amigos e colaboradores

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A FLOR PROMETIDA - EZLN


De tempos em tempos é importante relembrar as demandas que foram apresentadas pelas forças populares e que foram sendo esquecidas pela rotina atordoante do contemporâneo. Temos o triste hábito de irmos esquecendo o que somos forçados a esquecer, sem nenhuma resistência...
Segue algo para irmos relembrando que existem demandas continuas esquecidas no rastro social da exclusão...

"Para os homens e mulheres que em diferentes línguas e diferentes formas, acreditam em um futuro mais humano e lutam por isso hoje.

Irmão: neste planeta chamado terra e neste continente que eles chamam América, há uma terra cuja face parece ser um corte no lado oriental, e o lado ocidental faz um braço no Pacifico, de modo que os furacões não poderão leva-la para longe de sua historia. Sua historia é uma grande batalha entre o seu desejo de ser ela mesma e o desejo de estrangeiros de toma-la sob uma outra bandeira. Esta terra é nossa.

Nós, nosso sangue, desde a voz dos mais antigos ancestrais, percorríamos esta terra quando seu nome não era este que conhecemos hoje. Mas, em pouco tempo, nesta eterna batalha entre ser e não ser, ficar ou ir, ontem e amanha, nos veio a mente, agora com o sangue de duas gerações, que poderíamos chamar de México esta terra, esta água, este céu e o sonho que tínhamos e que nos foi dado por nossos ancestrais.

Nos éramos outros, e em maior numero, e era perfeita a historia que nos tinha feito daquela forma, porque todos nascidos lá tinham um nome. Mexicanos, era como nos chamávamos e como eles nos chamavam. Então a historia continuou, com seus registros e nossa dor. Nos nascemos entre sangue e pólvora, entre sangue e pólvora crescemos.

Diversas vezes vieram os poderosos de outras terras querendo roubar nosso futuro. Então foi escrito, no hino dos guerreiros que nos une: “Mas, se um inimigo estrangeiro ousar profanar com seus pés o teu solo, pense, querida pátria, que o Céu te deu um soldado em cada filho teu”. É por isso que lutamos ontem. Com bandeiras e diferentes línguas, os estrangeiros vieram para nos conquistar. Vieram e foram embora.

Nós continuamos a ser Mexicanos porque não nos sentíamos confortáveis com qualquer outro nome, nem em andar sob outra bandeira que não a com uma águia devorando uma cobra, sobre um fundo branco com verde e vermelho dos lados. Nós, os primeiros habitantes desta terra, os índios, fomos esquecidos, deixados de lado; os outros começaram a fazer-se grandes e fortes, mas nos só tínhamos a nossa historia para nos defender, então nos prendemos a ela para manter-nos vivos.

E agora, à parte da historia que parece brincadeira, porque uma única pátria, a pátria do dinheiro, passou por cima de todas as bandeiras. E eles diziam “globalização” , e nos sabíamos que era como eles chamavam essa ordem absurda na qual o dinheiro é a única pátria a ser servida, e as fronteiras se desfizeram não por fraternidade, mas pelo dinheiro que encheu os bolsos dos poderosos sem nacionalidade.

A mentira foi espalhada de tal forma que teceu em nossa terra, alem do pesadelo dos Maias, um sonho de bondade e prosperidade para a minoria. Corrupção e falsidade eram os principais produtos que nossa pátria exportava para outras terras. Sendo pobres, encobrimos nossa carência como se fossemos ricos e, como muitas mentiras acabamos acreditando que era verdade.

Nos preparamos para os grandes fóruns internacionais e a pobreza foi declarada, pelo desejo do governo, uma intervenção que se extinguiria antes mesmo do desenvolvimento econômico. Nos? Eles nos esqueceram, e nossa historia não nos era mais suficiente para morrermos daquela forma, simplesmente esquecidos e humilhados.

Porque morrer não dói, o que dói é o esquecimento. Nos descobrimos que não existíamos mais, que os governantes tinham nos esquecido em meio a euforia do dinheiro e das crescentes taxas. Uma terra que esquece de si mesma é uma terra triste; uma terra que esquece seu passado não pode ter futuro. Então apanhamos nossas armas e fomos as cidades, onde nos viam como animais. E nos fomos e dissemos aos poderosos: “Estamos aqui!”, e nos gritamos para todo o pais: “Nós estamos aqui!”, e gritamos para todo o mundo: “Nós estamos aqui!”

E, veja como são as coisas, para que eles nos vissem, cobrimos nossos rostos, para que eles nos dessem um nome, negamos nossos nomes; apostamos no presente para que tivéssemos um futuro; e para viver... morremos. E ai vieram os aviões e tanques e helicópteros e morte, e nos voltamos para nossa montanha e mesmo lá a morte esperava por nós, e pessoas de todos os lados diziam: “Falem!” e os poderosos diziam: “Falem!”, e nos dissemos, “Então, vamos falar!”.

E nos falamos e dissemos a eles o que queríamos mas eles não entenderam muito bem, e nos repetíamos que queríamos democracia, liberdade e justiça, e parecia que eles não entendiam, e eles revisaram seus planos econômicos e todas a anotações de neoliberalismo em busca de tais palavras, mas parece que eles não acharam em lugar nenhum – e eles disseram “ Nos não entendemos”, e nos ofereceram um belo lugar num museu de historia e uma corrente dourada para amarrar nossa dignidade.

E nos, para faze-los entender o que queríamos, começamos a fazer em nossas terras aquilo que queríamos. Nos organizamos com a aprovação da maioria e começamos a ver como era viver com democracia, liberdade e justiça, e foi o que aconteceu; durante um ano, nas montanhas do sudeste mexicano, prevaleceram as regras zapatistas, e os zapatistas somos nós.

Em outras palavras, nos que não temos nome ou rosto, ou passado, somos índios na maioria, mas depois vieram mais irmãos de outras terras e outras raças. Todos somos mexicanos.

Quando governamos em nossas terras, fizemos assim: quando governamos, o alcoolismo veio a zero, porque as mulheres daqui disseram que o álcool só serve para os homens baterem nas mulheres e crianças e fazerem besteira, então elas disseram para não bebermos – e nenhum álcool entrava ou passava pelas nossas mãos, os mais beneficiados foram as mulheres e as crianças, e os mais prejudicados foram os negociantes e o governo.

E, com o apoio de “Organizações ditas não governamentais”, nacionais e estrangeiras, campanhas de saúde foram feitas e a expectativa de vida cresceu, mesmo com o governo diminuindo o nosso numero, os guerreiros. A terça parte de nossa força e formada por mulheres. Elas são muito corajosas, estão armadas e tem nos convencido a aceitar suas leis e também são parte da direção civil e militar da nossa luta e nós não dissemos nada, dizer o que?

E então foram proibidos o corte de arvores e leis foram feitas para proteger as florestas e contra a caça de animais, mesmo os que pertencessem ao governo; e ficou proibido o consumo e o trafico de drogas, e essas proibições foram mantidas. E o numero de mortes infantis ficou pequeno, como as próprias crianças. E as leis zapatistas eram aplicadas de forma igual para todos, não importando a posição social nem a quantidade de dinheiro de cada um. E todas as decisões mais importantes, estratégicas de nossa luta eram feitos por plebiscito.

E nos acabamos com a prostituição e com o desemprego, e também com os mendigos. E as crianças conheceram doces e brinquedos. E nós cometemos muitos erros. E também fizemos o que nenhum governo do mundo faria honestamente: reconhecer os erros e tomar providencia para concerta-los.

E então estávamos aprendendo, quando vieram os tanques e helicópteros e aviões e milhões de soldados, e eles vinham dizendo defender a soberania nacional e nos dissemos a eles que estava sendo violada nos EUA, e não em Chiapas, e que não se pode defender a soberania nacional passando por cima da dignidade rebelde dos índios de Chiapas.

Mas eles não ouviram porque o som das suas maquinas os faziam surdos, e eles estavam vindo em nome do governo, e, para o governo, traição é o meio para se conseguir o poder, e para nós lealdade é que queremos para todos. E a legalidade do governo veio com armas, e a nossa legalidade era baseada no consenso e na razão, e nos queríamos convencer, e o governo queria vencer, e nos acreditamos que nenhuma lei que precise usar armas para ser aceita por todos pode ser chamada de lei, é pura arbitrariedade, não importa como você a cubra com nome de leis, e aquele que faz com que uma lei seja valida com armas é um ditador, mesmo tendo sido votado pela maioria.

E eles nos expulsaram de nossas terras. E com os tanques vieram as leis do governo e as leis zapatistas se foram. E por traz dos tanques do governo veio a prostituição, o álcool, roubos, drogas, destruição, morte, corrupção, doenças e pobreza. E as pessoas do governo vieram dizendo que a legalidade de Chiapas tinha sido estabelecida, e eles vieram com coletes a prova de bala e tanques, e se passaram apenas alguns minutos e eles se cansaram de falar com galinhas, porcos, cachorros e um gato que passava por ali.

E o governo conseguiu, e o melhor você já sabe porque vários jornalistas vieram e publicaram. E esta é a legalidade que comanda nossa terra hoje. E esta e a guerra pela “legalidade” e “soberania nacional” do governo contra os índios de Chiapas. O governo também esta em guerra com todos os outros mexicanos, mas no lugar de tanques e aviões, eles usam um plano econômico que os matara de qualquer forma, mas lentamente...

E ai que eu me lembro, estou escrevendo isso em 17 de março, dia de São Patrício, e no México que lutou século passado contra o império das estrelas e listras, havia um grupo de soldados e diferentes nacionalidades que lutou em defesa do México, e esse grupo era chamado de batalhão de São Patrício, e meus companheiros me disseram: “Aproveite a oportunidade de escrever aos irmãos de outros paises e agradeça-lhes porque eles param a guerra” , e eu acho que é sua alegria de seguir dançando, a fim de não serem criticados, porque os aviões do governo continuam a nossa volta, e o que os companheiros querem é apenas dançar, em guerra e tudo eles continuam dançando.

Então eu escrevo em nome de todos os companheiros, porque, como no batalhão de São Patrício, nós vimos que há estrangeiros que amam o México mais do que muitos mexicanos que estão no governo hoje e amanha estarão na cadeia ou exilados, porque já estão de coração longe, porque eles querem outra bandeira que não a deles, e outro pensamento que não o deles.

E nos soubemos que muitas manifestações que muitas manifestações publicas e protestos e cartas e poemas e musicas foram feitas para cantar a guerra nos Chiapas, a área do México onde vivemos e morremos. E “Parem a Guerra!” eles disseram na Espanha, França, Itália, Japão, Canadá, Inglaterra, Brasil, Chile, Venezuela e Uruguai – e em outros paises eles não disseram, mas pensaram.

Então vimos que existem boas pessoas em diversas partes do mundo, e eles vivem mais perto do México do que aqueles que vivem em Los Piños, que é como chamam a casa do governo.

Nossa lei fez livros, hospitais, sorrisos, doces e brinquedos. A lei deles, dos poderosos, veio sem um argumento sequer e destruiu bibliotecas e hospitais, e trouxe tristeza e uma vida amarga para o nosso povo. E nos achamos que uma legalidade que destrói conhecimento, saúde e alegria é uma legalidade muito pequena para homens tão grandes, e nossa lei é melhor, infinitamente melhor do que a lei desses homens com vocação para estrangeiros que dizem nos governar.

Os gostaríamos de dizer a vocês, a todos vocês, obrigado. E se nos tivéssemos uma flor, nos daríamos a você, mas como não temos flores suficientes para dar a todos, uma só flor é suficiente para ser dividida e guardada por cada um, e quando vocês forem velhos, digam ás crianças e aos jovens de seu pais “eu lutei pelo México no fim do século XX aqui estava eu com eles e eu sei que eles queriam o que todo ser humano que não esqueceu o que é ser humano quer: democracia, liberdade e justiça, e eu não conheci seus rostos, mas conheci seus corações que são como o nosso”.

E, quando o México for livre (o que não significa ser feliz ou perfeito, apenas livre, em outras palavras, ter o direito de escolher livremente seu caminho, seus erros e acertos), então uma pequena parte de você, aquela no seu peito, mesmo que as implicações políticas tentem impedir, será também México, e aquelas seis cartas significarão dignidade, e então a flor será para todos ou não será.

E agora me passou pela cabeça que com esta carta você pode fazer uma flor de papel e coloca-la no seu cabelo ou na sua camisa, e pode sair dançando com seu belíssimo enfeite. E eu estou indo embora porque o avião de todas as devoções e eu tenho que apagar a vela, mas não a esperança. Esta será a ultima a morrer.

Saudações e a flor prometida: talo verde, flor branca, folhas vermelhas; e não se preocupem com a cobra, aquilo que vem voando é uma águia, ela tomara canta da cobra, vocês verão...

Sinceramente, das montanhas do sudeste mexicano,

Subcomandante Marcos"

Nenhum comentário:

Postar um comentário