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quarta-feira, 15 de abril de 2009

“... um pai enlaça o filho pelo ombro e o traz até a janela do conjugado no décimo pavimento de um prédio de vinte e cinco apartamentos por andar. De lá, se descortina aos seus olhos uma cidade poluída e superpopulada, onde grassam a fome, a miséria, a favela, onde dezenas de pessoas morrem diariamente em acidentes e homicídios, onde indivíduos-autônomos correm, consomem e competem por dinheiro e êxito pessoal, num país aviltado vinte anos pela ditadura e pela corrupção, massacrado pela dominação cultural e econômica; num mundo constantemente em guerra e ameaçado pela destruição nuclear.”
(Daniel Becker, 1985, p. 7)
1968, o ano mítico
André Luiz Mattos

O ano de 1968 é tomado como um ano mítico. Entretanto, pensar a partir dele é refletir sobre as diferentes realidades em que ele aconteceu, sem considerá-lo como um rompimento ou transformação imediata. Não é raro observarmos a transposição dos símbolos de 1968 de um país a outro, ou de uma realidade específica a outra sem considerar que os movimentos daquele ano não ocorreram pelas mesmas demandas ou que deveriam, necessariamente, ter as mesmas conseqüências. Quando parte dos estudantes brasileiros, em alguns lugares liderados por universitários, em outros por secundaristas, abriram suas faixas contra a Ditadura levaram consigo significativa solidariedade às suas causas de protesto naquele momento. Mas deixavam uma parte importante e majoritária da sociedade, contrária ou indiferente as suas ações, inclusive, em relação ao campo das produções culturais ou das novas concepções que alguns grupos faziam com relação às tradições familiares. É necessário considerar as contradições existentes. Geraldo Vandré, por exemplo, antes que sua música "Pra não dizer que não falei das flores" fosse incorporada como hino das passeatas estudantis, saiu do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, antes de 1964. Vandré alegava que a arte não era panfleto. Assim, as idéias absorvidas como totalizantes sobre a juventude não poderiam ter condicionado toda uma parcela de uma significativa, contraditória e abstrata parcela social em poucos meses, se não por uma providência divina transformadora sobre o plano terrestre.Imaginar, por exemplo, as convicções libertárias do "é proibido proibir" de um dirigente estudantil em alguma organização clandestina no pós AI-5 ou a declaração de Vladmir Palmeira, de que ainda não havia lido Marcuse, já em meados do ano mítico nos remete pelo menos à necessidade de ampliar o campo da reflexão em relação a esses "acontecimentos", como são chamados na França. Quando observamos 1968, sob a ótica das cidades onde ocorreram manifestações, temos que tomar ainda mais cuidado, já que suas realidades não podem ser excluídas da análise ou substituídas pela perspectiva do que poderia ter sido. As passeatas e as greves que ocorreram em São José Rio Preto, por exemplo, não podem ser analisadas com base na transposição de outras realidades do período, já que justamente o fato de terem ocorrido em uma cidade pequena e do interior, lhe atribuem uma diferenciada importância, a exemplo de Catanduva, Presidente Prudente ou Araraquara, cidades relativamente fora das principais redes de agitação do período. O tamanho e localidade de uma cidade não subtraem importância dos acontecimentos, da adesão do CAF, Centro Acadêmico da antiga Fafi, na greve de um terço da UNE em 1962, ou da fundação, pelos estudantes secundários, do Centro de Debates dos Assuntos do Petróleo em 1948, tanto quanto os acontecimentos de 1968. Não podemos interpretar um recorte do nosso passado o tendo como totalizante ou mecânico, a partir das ações, quando de grupos que se dispuseram ao embate sobre determinadas questões. Não podemos, quando analisamos o passado, transportá-lo para realidades diferentes, nem tempos que não os seus, sob o risco de torná-lo fora do alcance interpretativo ou da tentativa de interpretação.
ANDRÉ LUIZ RODRIGUES DE ROSSI MATTOS
Sociólogo e historiador
http://www.diarioweb.com.br/artigos/body_artigos.asp?idCategoria=35&idNoticia=103594
Da anistia à verdade
André Luiz Mattos

Ao pronunciar oficialmente a abertura do 31º Congresso da União Nacional dos Estudantes, na cidade de Salvador, em 1979, José Serra, ex-presidente da entidade em 1964, alertou para uma cadeira vazia. Ao centro da mesa de abertura, uma placa indicava o nome de Honestino Guimarães, último presidente, que de forma clandestina, a UNE havia conseguido eleger, no ano de 1971, por meio de micro congressos. No ano em que a Lei da anistia permitiu o retorno dos "despatriados" e "blindou" os algozes da escuridão iniciada em 1964, os estudantes assumiam a perda de um desaparecido, nas oficialidades semi-clandestinas de reconstrução da primeira entidade nacional brasileira. Ao olhar, porém, os campos do Araguaia, as passeatas e greves de 1968, a desarticulação dos grupos, organizações e movimentos de resistência a Ditadura e os outros quinze anos que se completavam naquele 1979, a história, narrada pela poesia, nos revela "ruas de mortos e sumidos", que deixaram seus amigos e familiares para buscar a verdade. Em nossa época, ao completar vinte e oito da anistia, o Brasil dá passos a frente, mesmo com atrasos em relação a alguns de nossos vizinhos da América do Sul, lançando mão de um documento oficial do Estado, pela Secretária Especial dos Direitos Humanos do Governo Federal, que assume as torturas, mortes, ocultação de cadáveres e estupros praticados pelo Estado em nosso recente passado.Não nos foge do conhecimento a radicalidade desse período, mostrado inclusive por meio das páginas dominicais do Diário da Região, que narram acertadamente alguns acontecimentos da época, com ênfase para os setores caipiras da repressão e dos reprimidos. Importante nos ater, que a história não nos oferece caminhos sutis, e nos reserva conflitos, que em determinados momentos são mais intensos e em outros menos. Em 1979, um Brasil sujo de sangue anistiou a todos e garantiu a abertura segura proposta pelos militares, agora, a mesma história nos alerta de que as cicatrizes do período, por vezes, ainda deixam escorrer alguma vontade de verdade.O lançamento do livro "Direito á memória e a Verdade", como um documento histórico, que relata e discute 339 crimes de morte durante a Ditadura Militar, apresenta essa vontade de verdade. Entretanto, não podemos tratá-lo como uma revanche de vencidos sobre vencedores em um outro momento histórico, perspectiva pela qual muito setor vem encarando o tema, mas, por compreender que é necessário buscar as verdades e as interpretações do período iniciado em 1964. A sociedade tem por direito legitimo conhecer a verdade sobre o passado do que chamamos de nação, e as famílias dessa nação, de terem acesso aos esconderijos não descobertos das ossadas de seus familiares que combateram no passado. Para isso, também, os militares tem de assumir suas posições atuais, de pertencerem a uma outra e nova época, de não compartilharem com a institucionalização do derramamento de sangue cometido no passado. Talvez, a verificação da verdade possa ser a distensão do conflito entre a sociedade querendo a verdade, os familiares querendo suas ossadas e os militares querendo continuar a escondê-las, e, com isso, darmos prosseguimento, munidos de nossa história, a moldagem de nossa identidade nacional.
ANDRÉ LUIZ RODRIGUES DE ROSSI MATTOS
Coordenador do Projeto Memória do Movimento Estudantil de Rio Preto
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http://www.diarioweb.com.br/artigos/body_artigos.asp?idCategoria=35&idNoticia=98321